Livro didático de ex-soldados para ensino médio em regiões ocupadas. Apresentação online com pontos de vista alternativos. Tragédia em Bucha abordada.
A introdução de uma nova matéria militar em todas as escolas da Rússia e nos territórios ocupados da Ucrânia tem gerado controvérsias e debates entre os cidadãos dessas regiões. A disciplina denominada ‘Fundamentos de Segurança e Defesa da Pátria’ será ministrada de forma obrigatória para os alunos do ensino médio, com idades entre 15 e 18 anos, a partir do próximo dia 1º de setembro de 2024.
O governo Russo afirma que a nova matéria é essencial para garantir a soberania e defesa do país, enquanto críticos questionam a real intenção por trás dessa decisão. A Rússia está enfrentando uma série de desafios geopolíticos e a inclusão dos ‘Fundamentos de Segurança e Defesa da Pátria’ no currículo escolar é vista como uma medida para fortalecer o nacionalismo e a militarização da juventude Russa.
Rússia: Livro didático promove narrativas falsas
👉🏾 A BBC obteve uma cópia do novo livro didático sobre o tema — e analisou suas 368 páginas. O exemplar contém narrativas falsas do Kremlin sobre a guerra contra a Ucrânia e convoca os estudantes a entrar para o Exército. A aula ‘Fundamentos de Segurança e Defesa da Pátria’ vai ser ministrada uma vez por semana, substituindo uma disciplina de longa data conhecida como ‘Fundamentos de uma Vida Segura’ em todas as escolas do país e em cinco regiões da Ucrânia ocupadas pela Rússia. A expectativa é de que ex-soldados sejam professores da nova disciplina.
Aos russos formados em pedagogia que regressam da guerra na Ucrânia, já estão sendo oferecidos cursos gratuitos de reciclagem para se tornarem professores.
Introdução modernizada do ensino militar na Rússia
O Exército russo em Defesa da Pátria, o primeiro livro didático da nova disciplina, é publicado pela ‘Enlightenment’, a principal editora educativa russa. A empresa organizou uma sessão de apresentação online para professores em janeiro, à qual a BBC assistiu.
‘Caros colegas, todos nós compreendemos a importância de apresentar informações aos nossos estudantes a partir da perspectiva do nosso Estado [Rússia]’, declarou Olga Plechova, representante da editora.
‘Não podemos transmitir pontos de vista alternativos aos alunos. Portanto, este livro vai ajudá-los a responder as perguntas das crianças e oferecer uma abordagem precisa de determinados eventos.’ Para ‘abordar com precisão’ determinados eventos, a editora contou com a ajuda de um representante do Ministério da Defesa, o tenente-general Rafael Timoshev, e do editor-chefe adjunto do ‘jornal russo’ do Kremlin, Igor Chernyak, coautores do livro didático.
‘Ataques de foguetes nazistas’ na Rússia
A BBC adquiriu um exemplar de O Exército Russo em Defesa da Pátria. As páginas do livro estão repletas de histórias que descrevem as ‘conquistas heroicas dos soldados russos’, que vão desde o século 13 até os dias de hoje. Os autores da publicação elogiam o ditador soviético Joseph Stalin, celebram as vitórias do povo soviético durante a ‘Grande Guerra Patriótica’ [termo usado pelos russos para se referir à Segunda Guerra Mundial] e aclamam o papel dos militares russos na ‘reunificação da Crimeia com a Rússia [termo usado pelo Kremlin para a ocupação da península ucraniana].
Em um capítulo à parte, o livro escolar aborda a chamada ‘operação militar especial na Ucrânia‘ [como o Kremlin chama a invasão em grande escala da Ucrânia].
‘Quando houve um golpe de Estado em Kiev em 2014, o novo governo iniciou uma repressão a tudo que era russo.’
Livros russos foram queimados, monumentos foram destruídos, canções russas e a própria língua russa foram banidas’, descrevem falsamente os autores.
‘Coquetéis de ‘sangue russo’ eram servidos em restaurantes.’ E as alegações falsas continuam: ‘Cidades nas regiões de Luhansk e Donetsk, onde existia dissidência contra tais políticas, foram bombardeadas por explosivos e foguetes nazistas’.
Os autores do livro didático afirmam ainda que ‘foram a Ucrânia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) que planejaram começar a guerra’.
De acordo com o texto, ‘em 19 de fevereiro de 2022, na conferência de Munique, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, ameaçou a Rússia, afirmando que a Ucrânia planejava adquirir armas nucleares.’
Kiev estava planejando recuperar o controle de Donbas e capturar a Crimeia, e depois disso as tropas da OTAN ficariam posicionadas lá’.
A passagem continua, afirmando que ‘um grande número de tropas e veículos blindados ucranianos estavam concentrados nas fronteiras’.
O analista político ucraniano Volodymyr Fesenko classifica este conteúdo como ‘completa desinformação e mentira’. Ele se recorda de ter assistido ao discurso de Zelensky em Munique, no qual o presidente ucraniano mencionou o Memorando de Budapeste.
O acordo, assinado em 1994, previa que a Ucrânia entregasse suas armas nucleares em troca de garantias de segurança da Rússia e de outros países.
Estas garantias foram violadas quando a Rússia ocupou a Crimeia em 2014. De acordo com Fesenko, diferentemente do que o livro afirma, Zelensky enfatizou esta violação em meio a preocupações crescentes sobre a mobilização de militares russos perto das fronteiras da Ucrânia desde o fim de 2021.
Rússia: Estrutura militar e recrutamento
O Exército Russo em Defesa da Pátria começa com uma visão geral aprofundada da estrutura das Forças Armadas da Rússia. À medida que o conteúdo se desenvolve, defende cada vez mais que maiores de 18 anos se alistem no Exército. O livro descreve o processo, incluindo os documentos necessários, o tamanho da foto, um link para o formulário de inscrição e endereços próximos para alistamento.
Promove também os benefícios, como assistência médica e seguro gratuitos, salário atrativo e três refeições diárias. Lista ainda várias restrições em caso de não comparecimento ao local de alistamento se for recrutado, incluindo a recusa de crédito e a proibição de dirigir automóvel ou registrar propriedade.
Os jovens dos territórios ucranianos ocupados, como a Crimeia e Donbas, podem ser atraídos por estes bônus econômicos, alerta Olha Skrypnyk, chefe do Crimean Human Rights Group
‘Além da propaganda agressiva dirigida às crianças nos territórios ocupados da Ucrânia durante os últimos dez anos, não há oportunidades de ganhar dinheiro lá.
Onde mais eles vão receber esse salário?’, diz ela.
Skrypnyk acrescenta que o novo livro vai contribuir para a mobilização de reservas na Rússia e nos territórios ocupados pelo país.
‘Então essas crianças vão para a guerra e morrem.’
Em dois anos de guerra, a Rússia perdeu pelo menos 1.240 soldados com até 20 anos. Esses são apenas aqueles cujas mortes foram confirmadas pelo serviço de notícias em russo da BBC com base em informações divulgadas. Gráficos: Angelina Korba
Fonte: © G1 – Globo Mundo
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